terça-feira, 14 de abril de 2009

Pedro Salgueiro - Colaboração de camarada Manim

AUTOBIOGRAFIA COM GIZ

Apareceu na cidade um palhaço com um ouvido imundo.Vaga pelas ruas com a impunidade que apenas os saltimbancos tentam ter.

Teve a petulância de,mal chegado,negar umas linhas para o nosso prestigioso jornal:quando muitos aqui venderiam a mãe, ou a mão.Diz ter poucas idéias por ano,e que não sabe a hora em que elas vêm ou vão.
Fez sua casa no prédio antigo da cadeia - paredes robustas, chão áspero;como ornamentos apenas dois armadores e a rede grossa e a mesa gasta onde lapida sua preces.Quando a idéia vem,quando vem,puxa o tamborete,afia a faca,apruma o esmeril entre os joelhos,e sua que sua.Da pouca frase resta o cascalho que joga pelas ruas nas raras manhãs em que se arrisca sair.Deixar a toca só à tardinha,aí não mais de rosto limpo - o sorriso agora pintado na face:a boca fala,o ouvido escuta.Tudo é impunidade nestes gestos loucos:puxa a língua-de-sogra,enrijece a gravata, dá banana para o secretário de governo - tudo pode no final da tarde,a máscara lhe impede o pranto.
Anda pela cidade um médico insano.Diz que veio curar as doenças do mundo.Montou consultório na praça,cobra pouco,e já possui uma freguesia respeitável.Durante a manhã rega o jardim,poda os galhos do flamboyant - espalha as rosas frescas pelo chão,que somente as apanhará murchas:quando então realiza o ritual das três da tarde.Respira fundo;veste o macacão;põe as luvas,o nariz de cera,a peruca;pega o velocípede e sai por aí,fingindo a alegria de sempre.
Corre pelas calçadas um homem doido.Procura com insistência as praças,esmaga as flores,espanta o casal de namorados,consola dois velhos que conversam em silêncio.Atravessa as ruas em disparada,desmantelando o trânsito;mas quando o observamos atentos,assutado puxa um caco de espelho,que vira sorrindo em nossa direção.
Desliza pela noite um sorriso insano.Ouve coisas,distorce loisas.
E nunca olha para frente.

Um comentário:

  1. Palavras rápidas e inteligentes nos deixam em gozo permanente.O Pedro Salgueiro é escritor premiado.

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